segunda-feira, 18 de abril de 2011

Das Unheimlich

O estranho é interpretado de forma diferente de como eu interpreto. Uso num sentido não reduzido apenas ao que é diferente, mas no que é externo, estrangeiro. Aquelas experiências epifânicas onde o estranho me dá uma bofetada e eu desperto para o “descobrimento súbito da grande verdade” (nas palavras de “Os Simpsons – O Filme”). Mas, como já diz Nietzsche, não existem fatos – ou a verdade -, apenas interpretações.
Não quero ser como Ana, do conto “Amor”. Não quero ser como Ulisses. Não quero ser uma mistura dos dois e não quero viajar o mundo inteiro, experimentando de tudo, sentindo tudo e depois voltar pra casa, apagar a vela e apagar a lembrança de tudo o que passei. Eu não quero esquecer. Eu não quero parar de ter epifanias. Minhas epifanias mostram uma certa evolução, um certo aprendizado – mesmo que esse aprendizado anule tudo o que eu tinha por verdade até então.
Meus surtos não são minhas epifanias. Meus surtos acho que são até o oposto. Porque, na grande parte das vezes eu simplesmente não sei por que eu surto. A epifania pode sim trazer um mal estar, porque, afinal, a verdade, mesmo que as nossas verdades (provavelmente as únicas que existem) nem sempre nos são agradáveis. Mas HÁ um aprendizado e isso é indiscutível. O surto é só o mal estar, sem o aprendizado. Eu não ligo pro mal estar se tirar proveito disso. O que não suporto é o mal estar pelo mal estar, o mal estar puro e só.
Eu não quero sair intacta de tudo. E eu, depois de ter uma epifania, simplesmente NÃO POSSO voltar a ser eu mesma. Se eu mergulhar num rio, eu não sairei eu mesma e o rio também não será o mesmo. Eu me mudo O TEMPO INTEIRO, literalmente. Revoluções internas acontecem a todo momento e eu não sou nunca a mesma pessoa – e, no entanto, nunca deixo de ser eu. E, como é óbvio, simplesmente não se pode querer voltar a uma situação depois que ela foi revolucionada – ou ela não volta a ser o que era ou não se deu uma revolução.
Dentro de uma perspectiva clariceana, eu NÃO QUERO parar de me defrontar com o estranho. Eu NÃO QUEO ter a banalidade da vida cotidiana dos personagens de Clarice. Ou, se tiver a vida medíocre, que não me faltem epifanias. Eu não quero a banalidade cotidiana, o que não quer dizer que eu não queira o cotidiano. E meu cotidiano não é banal. Tudo me incita, me provoca, me inspira. Meu ônibus, uma conversa ou frase aleatória escutada por acaso, as pessoas, o que eu ouço, o que eu vejo, tudo me faz refletir. Eu transformo o que seria a banalidade do cotidiano nas epifanias.
Clarice vai trabalhar o conceito de “estranho de nós mesmos”. Eu me mudo o tempo todo, e eu tenho várias facetas. Impossível eu conhecer todas, e mais, impossível que os outros conheçam todas. Somos um conjunto de facetas e, tal como uma cebola, não temos um estrito caroço ao qual possamos dizer: ISSO sou eu. Somos camadas – e se tirarmos elas, não sobra nada. E não é questão de ser falso com uma pessoa ou outra. Mas você NUNCA será a mesma pessoa em dois ambientes diferentes com pessoas diferentes.
Há também um conceito “anti-positivista” que eu concordo que seria a ideia de que sem ordem é que há progresso. Como progredir na inércia? É no embate que se evolui. É com a dúvida que aprendemos. É com a desordem mental que progredimos.
Tentamos colocar a vida nos eixos. Tentamos ser Anas. Tentamos deixar a vida organizada, limpa e nos ocupamos disso. Essa vida é robótica, é o cotidiano banal que é quebrado pelo mal estar que Ana sente. Ana vê que a vida está na putrefação do Jardim Botânico, não na ordem da sua casa. A vida está na desordem, no fétido, na morte.
Vivemos na ditadura da identidade fechada. Ora, nossa identidade não pode ser fechada, porque SEMPRE seremos sujeitos em construção. Personalidade formada é uma coisa, nós formados é outra. Talvez as “pessoas-personagens-de-Clarice” consigam, mas quem se permite sair da inércia nunca estará permanentemente formado.
Essa ditadura nos diz que PRECISAMOS saber quem nós somos e que só podemos ser UMA coisa e, principalmente, que não podemos ser paradoxais. Somos seres dicotômicos por natureza, mas não nos permitimos isso. Nós não somos o lugar dos isso OU do aquilo; somos o lugar do isso E do aquilo.
Apesar das constantes reclamações de que vivemos num mundo individualista, estamos vivendo o apagamento da subjetividade. E me parece que a normalidade no sentido mais usado do termo pode ser interpretada como um tipo de apagamento da subjetividade. Não vou apagar minha subjetividade para me transformar numa personagem de Clarice. Viver sua subjetividade não quer dizer, de forma alguma, viver em detrimento da coletividade. Só quer dizer, pelo menos ao meu ver, não deixar de ser quem você é, ou não deixar de lado alguma de suas facetas, apenas para se encaixar no padrão.
Clarice perturba muito mais que alivia. Mas como diz a propaganda, o que move o mundo são as perguntas, não as respostas.

3 comentários:

  1. Kira! OMG! Estou sem palavras! Esse texto está maravilhoso! *-* Não sei nem o que dizer! Com certeza é o melhor texto seu que eu já li e dá para perceber que veio do fundo do coração, do seu lugar mais sincero! E por mais que esse seja um lugar sofrido nesse momento, detesto admitir mas os melhores textos vêm dos momentos de maior sofrimento! E adorei todas as comparações reflexivas que você fez! Vou continuar seguindo seu blog FATO! Parabéns pelo texto!

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  2. Nossa, sério mesmo?! hahahaha valeu, Gaby!! Eu escrevi umas ideias esparsas no ônibus, depois de uma aula locona de Clarice, e essas ideias acabaram virando esse texto rs.

    E concordo com você, acho que os melhores textos - ou qualquer coisa ligada à arte - são feitos nesses momentos tensos da vida... O que não quer dizer que eu vou procurar me manter assim para escrever melhor rs.

    Obrigada meeesmo, Gaby!! :*

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